segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Norwegian Wood - trecho

Haruki Murakami, ou Murakami Haruki, como dizem os japoneses, liderou as apostas para o Nobel de Literatura de 2012. Sim, ele é um best-seller respeitado, é inovador e um enigma para qualquer estudioso de literatura. Mas creio que não faz muito o perfil da Academia Sueca, que tem a tendência de preferir autores mais engajados politicamente.

Um de seus livros mais famosos, Norwegian Wood (Objetiva, tradução de Jefferson José Teixeira), é bem diferente do resto de sua obra, tendo uma narrativa mais realista que a de suas outras obras. É engraçado que este romance de formação seja o livro favorito de muita gente, mas também é um pouco difícil defendê-lo. A estrutura não inova, o estilo é quase banal e é bem difícil encontrar frases de malabarismo sintático. É um livro de uma simplicidade enganadora: os personagens são fortes, e a sua beleza se esconde em pequenas sutilezas. Norwegian Wood foi adaptado para o cinema recentemente.

Abaixo, coloco um trecho.




(...) Mesmo assim, Midori continuava interpretando alegremente as canções, espaçando-as com goles de cerveja. Ao terminar de cantar todas as canções conhecidas, começou a entoar uma estranha música de sua autoria.

Adoraria cozinhar um guisado para você
Mas não tenho panela.
Adoraria tricotar um cachecol
Mas não tenho lã.
Adoraria escrever poesias
Mas não tenho caneta.

   - O título da canção é “Não Tenho Nada” – disse Midori. Tanto a letra quanto a música eram sofríveis.
   Ao mesmo tempo em que ouvia essa música sem pé nem cabeça, eu imaginava que, se as faíscas atingissem o posto de gasolina, a casa onde estávamos voaria pelos ares. Cansada de cantar, Midori pôs o violão de lado e encostou-se a meu ombro como um gato se espreguiçando ao sol.
    - O que achou da minha música? – perguntou ela.
    - Singular, original, expressa bem sua personalidade – respondi com todo o tato possível.
    - Obrigada – agradeceu ela. – O tema é não ter nada.
    - Acho que consegui entender isso.
    - Sabe, quando a minha mãe morreu... – Midori virou-se para mim.
    - O que houve?
    - Não fiquei nem um pouco triste.
    - É mesmo?
    - E também não senti tristeza quando papai partiu.
    - Verdade?
    - Sério. Não acha horrível? Não me acha insensível?
    - Tenho certeza de que foi por causa das circunstâncias.
Adaptação cinematográfica
- Sim, aconteceu muita coisa – disse Midori. Aqui em casa era tudo muito complicado. Mas eu sempre pensei que seria natural ficar triste quando o pai da gente parte ou a mãe morre. Comigo as coisas não aconteceram desse jeito. Eu não senti nada. Nem tristeza, nem solidão, nem dor, e praticamente não penso neles. Às vezes eles aparecem nos meus sonhos, só isso. De dentro da escuridão, minha mãe me encara e me acusa dizendo: “Confesse que está contente por eu ter morrido.” Não estou particularmente alegre com a morte dela. Só não estou tão triste assim. Para ser sincera, não chorei uma lágrima sequer. Ao contrário, quando eu era pequena chorei a noite toda porque meu gato morreu.
    Eu me perguntava a razão de tanta fumaça. Era impossível enxergar o fogo e o incêndio não parecia ter se alastrado. Só a fumaça subia aos céus sem cessar. Eu pensava no que poderia estar queimando por tanto tempo.
    - Mas a culpa não é só minha. Admito que não sou um poço de sensibilidade. Mas se eles, quer dizer, se meu pai e minha mãe me amassem um pouco mais, provavelmente minha maneira de sentir seria diferente. Eu certamente teria ficado bem mais triste.
    - Você acha que não foi amada?
    Ela inclinou o pescoço e olhou para mim. E sacudiu a cabeça afirmativamente.
    - Seria um meio-termo entre “insuficiente” e “nulo”. Sempre fui ávida por afeto. Queria receber amor até me saciar, mesmo que fosse por uma única vez. Mas eles nunca me ofereceram seu amor. Se eu fazia ares de criança mimada pedindo alguma coisa, eles invariavelmente reclamavam alegando não ter dinheiro. Por isso prometi a mim mesma fazer o possível e o impossível para encontrar alguém que me amasse integralmente todos os dias do ano. Tomei essa resolução quando ainda estava no primário.
    - Fantástico! – exclamei admirado. – E  conseguiu?
    - Aí entra a parte difícil da história – disse Midori, e por alguns instantes permanceu pensativa admirando a fumaça. – Provavelmente por ter esperado demais, eu sempre exijo perfeição. Por isso é complicado.
    - O amor perfeito?
    - Não. Nem eu espero tanto. O que desejo é um capricho. Só um capricho. Por exemplo, eu digo agora que estou com vontade de comer torta de morango com chantilly. Então, você larga tudo o que está fazendo e vai correndo comprar. E volta arfando e me entrega dizendo: “Aqui está, Midori. Sua torta de morango com chantilly.” E eu, jogando a torta pela janela, digo: “Ah, já perdi a vontade.” É isso que eu procuro.
    - Isso não me parece ter nenhuma relação com amor – opinei, um pouco espantado.
    - Aí é que você se engana. Não sabia? – disse ela. – Há épocas em que esse tipo de coisa é de suma importância para uma garota.
    - Atirar tortas de morango com chantilly pela janela?
    - Exatamente. E eu quero que o rapaz me diga: “Tudo bem, Midori. O errado fui eu. Eu deveria ter pressentido que você perderia a vontade de comer torta de morango com chantilly. Sou tão idiota e insensível quanto bosta de jumento. Para me redimir, vou comprar qualquer outra coisa que você queira. O que você deseja? Uma musse de chocolate, ou quem sabe uma torta de queijo?”
    - E aí?
    - Aí eu o amaria perdidamente pelo que ele fez.
    - Acho essa história completamente sem pé nem cabeça.
    - Pois, para mim, isso é amor. Embora ninguém seja capaz de compreender – Midori sacudiu levemente a cabeça contra o meu ombro. – Para certo tipo de pessoas, o amor começa em coisas minúsculas ou insignificantes. Só pode começar assim.
    - É a primeira vez que conheço uma garota que pensa assim.
    - Sabe que muita gente me diz a mesma coisa? – disse ela, cutucando as cutículas. – Mas eu só consigo pensar as coisas seriamente. Estou só sendo sincera. Nunca me passou pela cabeça que pudesse haver diferenças entre a minha maneira de pensar e a dos outros, e nem eu desejo isso. Mas quando sou sincera todos acham que é brincadeira ou encenação. Por isso as coisas às vezes ficam complicadas.
    - É nessas horas que você deseja morrer num incêndio?
    - Não, claro que não. Foi só uma questão de curiosidade.
    - Morrer num incêndio?
    - Não. Eu só queria ver a sua reação – disse Midori. – Mas não tenho medo de morrer. Mesmo. A fumaça nos envolve, perdemos os sentidos e morremos, e pronto. Num piscar de olhos. Isso não me apavora. Principalmente comparado com o modo como minha mãe e outros parentes meus morreram. Sabia que em nossa família todos morrem de doenças graves, agonizando desesperadamente até o fim? Deve ser coisa de sangue. Leva muito tempo até morrerem. No final, não se sabe dizer se ainda estão vivos ou mortos. Só resta a consciência da dor e do sofrimento.
    Midori levou um Marlboro à boca e o acendeu.
    - Sabe, o que me mete medo é esse tipo de morte. A sombra da morte invade o território da vida devagar, bem devagar, e quando menos se espera tudo escurece, não se enxerga mais nada, e cai-se prostrado numa condição tal que as pessoas o consideram mais morto do que vivo. Eu odeio isso. Não poderia suportar isso.

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