segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Lobo Antunes - Os Cus de Judas

Uma leitura que me tirou da zona de conforto foi Os Cus de Judas, do português António Lobo Antunes. Numa primeira impressão me deparei com uma prosa truncada, difícil, pedante, de estrutura confusa. Mas, aos poucos, a poesia e a riqueza do seu texto se desvendaram. Nunca havia lido nada igual.


Quem ama os livros arrastados, de vocabulário excessivo do Saramago, por exemplo, vai desconfiar da sintaxe de Lobo Antunes. Não é à toa que, em Portugal, os leitores se dividem em Saramaguistas convictos e Lobantunistas ferrenhos. São água e vinho. O vinho, no caso, é Antunes. Já outros preferem o insípido e inodoro.

Mas do que trata Os Cus de Judas? No livro, temos a narração em primeira pessoa de um médico português na guerra de Angola. Mas isso não interessa. Ou melhor, a trama do livro não é o mais importante. O que importa é como ele escreve.

As suas comparações, por exemplo, são inusitadas:
“quartos de hotel impessoais como impressões de psicanalistas”.
“O passado vinha-me à memória como um almoço por digerir nos chega em refluxos azedos à garganta.”
“...clávículas tão salientes como as sobrancelhas de Brejnev.”
“As cortinas das janelas ondulavam acenos evasivos de coreógrafo entediado..”

A sua linguagem, muito próxima do poético, não alivia a realidade narrada, pelo contrário, por vezes a torna mais dura e incisiva.
Mais alguns trechos do livro Os Cus de Judas:
A noite surge depressa demais nos trópicos, após um crepúsculo fugaz e desinteressante como o beijo de um casal divorciado por mútuo consentimento. As palmeiras que bordam a baía acenavam as rémiges das folhas em voos preguiçosos, as traineiras abandonavam o cais arrotando o gasóleo do jantar, o néon dos cabarés da Ilha piscava as pálpebras demasiado pintadas, em cujo chamamento ansioso ecoavam os apelos das mulheres das barracas de tiro do Parque mayer, cujas vozes roucas me povoaram os sonhos, na adolescência, de crocitos apavorantes. O calor vestia-nos os gestos de algodão pegajoso, e a água chegava a ferver dos canos num assobio de gêiser. Jantei sozinho num restaurante da Baixa, repleto de homens nédios, de pescoços a luzirem de suor como os dos bois minhotos, e dedos povoados de anéis de pedras pretas ou vermelhas, que submergiam no caldo verde bigodes de lontras esfomeadas. Um negro corcunda tentava sem sucesso impingir de mesa em mesa bonecos talhados a canivete de uma vulgaridade de plástico, até o empregado o enxotar com o guardanapo que pendurava do ombro, tão escuro de nódoas e fuligem como o lenço de um tomador de rapé. Um velhote calvo, de carranca de chafariz, abocanhava num canto uma mulata protegida da sua sanha por três voltas de colares, ocupada a devorar um sorvete gigantesco, monstruoso de frutas cristalizadas e de cremes, com uma cereja obscena no topo. Uma máquina elétrica de discos vomitava aos guinchos pasodobles de clube recreativo paranóico, e com o pano de fundo dessas sugestões toureiras que me obrigavam a berrar no bocal urros tremendos de cadeira de dentista, telefonei à hospedeira da TAP que me esperava, de Logan’s em riste, num terceiro andar do Bairro Prenda, metida nuns jeans tão apertados que quase se percebia, através do tecido, o pulsar das veias das coxas. Um cão minúsculo, parecido com um rato pernalta e magro, reteso de hostilidade azeda, veio ladrar-me, furioso, aos tornozelos, e eu pensei em levá-lo de presente ao alferes catanguês para o café da manhã de domingo, no intuito amável de lhe variar a dieta. A rapariga agarrou nele por uma pata, atirou-o para o interior da cozinha onde o bicho tombou num ganido lancinante de fraturas múltiplas, e fechou a porta com um pontapé; o passo seguinte seria, provavelmente, esmagar-me os testículos com uma joelhada de artes marciais, e no dia imediato encontrariam o meu cadáver, horrorosamente mutilado, no meio de móveis em desordem e de pedaços de garrafas.


...


Entretanto, e se estiver de acordo, talvez possamos tentar fazer amor, ou seja, essa espécie de ginástica pagã que nos deixa no corpo, depois de acabado o exercício, um gosto suado de tristeza no desastre suado dos lençóis: a cama não range, é improvável que a válvula de descarga do andar de cima vomite a esta hora o conteúdo limoso do seu estômago, perturbando as carícias sem ternura que são como que o motor de arranque do desejo, nenhum de nós sente pelo outro mais do que uma cumplicidade de tuberculosos num sanatório, feita da melancólica tristeza de um destino comum, já vivemos demais para correr o risco idiota de nos apaixonarmos, de vibrarmos nas tripas e na alma exaltações de aventura, de nos demorarmos tardes a fio diante de uma porta fechada, de ramo de flores em riste, ridículos e tocantes, a engolir cuspes aflitos de José Matias. O tempo trouxe-nos a sabedoria da incredulidade e do cinismo, perdemos a franca simplicidade da juventude com a segunda tentativa de suicídio, em que acordamos num banco de hospital sob o olho celeste de um S. Pedro de estetoscópio, e desconfiamos tanto da humanidade como de nós mesmos, por conhecermos o egoísmo azedo do nosso caráter oculto sob as enganadoras aparências de um verniz generoso.

...


Sofia, instalo-me no sanitário como uma galinha a ajeitar-se no seu choco, abanando as nádegas murchas das penas na auréola de plástico, solto um ovo de ouro que deixa na louça um rastro ocre de merda, puxo a válvula de descarga, cacarejo contentamentos de poedeira, e é como se essa melancólica proeza me justificasse a existência, como se sentar-me aqui, noite após noite, diante do espelho, a observar no vidro os vincos amarelos das olheiras e as rugas que em torno da boca se multiplicam numa fina teia misteriosa, idêntica à que cobre de leve os quadros de Leonardo, me assegurasse que ao fim de tantos anos de deixar-te permaneço vivo, durando, Sofia, neste aquário de azulejos que o foco do teto obliquamente ilumina, peixe morto à tona, de órbitas apodrecidas a boiarem.

O que já disseram:
Evidentemente Os Cus de Judas foi um escândalo. Toda a crítica bem pensante torceu o nariz para o seu suposto baixo nível. António Lobo Antunes foi acusado de desleixado e de escrever “como brasileiro”, o que para certos escalões engravatados e decadentes significa escrever mal. Mas não era apenas isto, Os Cus de Judas feria a pasmaceira lusitana, tocava nas feridas gangrenadas do colonialismo, na profunda lesão deixada pelas guerras coloniais e não recuava frente à rotina moribunda de uma sociedade que se contentava a ruminar glórias do século XVI e a chafurdar na mediocridade, temendo o futuro.
Márcio Souza


Aqui, trechos de uma entrevista com o escritor português:


Como o senhor define a sua obra?

Lobo Antunes:
Não entrei na literatura para ser um escritor qualquer. Quero ser maior que Tolstoi e Joyce – e acho que todo escritor tem de pensar assim, senão ele não produz nada. Ele tem de pensar em coisas grandes. Comecei a escrever porque queria revolucionar o romance, subverter a literatura, transformá-la em algo que ainda não existia, ofuscar os antepassados. Quero colocar tudo num livro, o mundo inteiro, minha vida inteira. Quero praticar a obra de arte total que imaginava Richard Wagner. Escrevo livros impossíveis. Se me ocorre uma história que me sinto incapaz de formular, é aí que começo um livro. Quero escrever sobre o que não entendo. É assim que vou contornando os problemas, e chamam isso de estilo experimental. Na verdade, é uma atitude de enfrentamento. E de liberdade. É por isso que não creio na profundidade. O que existem são infinitas superfícies superpostas. Quando você se aprofunda demais em um assunto, acaba saindo pelo outro lado, de mãos abanando. Escrever é um ato impossível, porque tudo o que interessa vem antes das palavras, como as intenções, os desejos, a loucura. Os poetas são maiores porque conseguem transferir essas coisas inomináveis para as palavras. Mas escrever também é um ofício, como o de carpinteiro. É preciso conhecer a técnica, para abandoná-la. Todo grande livro é uma reflexão profunda sobre a arte de escrever. Cada livro meu tem de ser um mundo.

Como o senhor escreve?

Lobo Antunes:
Preciso de pelo menos quatro horas diárias para escrever, com caneta. Nesse período, não posso ser interrompido. Escrevo sem pensar. Antes, eu montava os projetos de livros com personagens e um resumo de cada capítulo. Hoje parto de nada. É como se me deixasse levar por uma mão misteriosa. Gosto do estado crepuscular, entro o sono e a vigília, em que você não sabe exatamente onde está – e as ideias vem à tona. É por isso que, quando interrompo o trabalho, gosto de deixar a frase ao meio, para poder retomá-la no dia seguinte. É mais fácil que ter diante de si um capítulo acabado – e daí ter aquela paralisia da página em branco. Adoro escrever quando estou cansado. É no cansaço que as boas ideias aparecem.