segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

A misteriosa chama da Rainha Loana

No romance A misteriosa chama da Rainha Loana, do italiano Umberto Eco, temos Yambo, um negociador de livros raros, que acorda no hospital sem memória depois de um derrame. Não reconhece sua mulher, seus filhos, nada. O detalhe é que se lembra de tudo o que leu, suas memórias são apenas literárias.

Poderia falar mais sobre o livro, mas, como sempre, não me aventuro pela crítica, e só colocarei um trecho da obra. É um trecho um tanto atípico de Eco. Veremos:

Levantei-me e olhei minhas fezes. Uma bela arquitetura em caracol ainda fumegante. Borromini. Devia estar com o intestino em forma, pois todo mundo sabe que só devemos nos preocupar se as fezes estão moles demais ou mesmo líquidas.

Pela primeira vez via o meu cocô (na cidade você se senta na privada e depois puxa logo a descarga sem olhar). Agora eu já o chamava de cocô, creio que é assim que as pessoas chamam. O cocô é a coisa mais pessoal e reservada que temos. O resto todos podem conhecer, a expressão do rosto, o olhar, os gestos. Mesmo o corpo nu, na praia, no médico, quando se faz amor. Até os pensamentos, porque em geral são expressos, ou adivinhados pelos outros através da maneira como você olha ou se mostra embaraçado. Claro, há também os pensamentos secretos (Sibilla, por exemplo, mas seja como for eu me traí, em parte, com Gianni e quem sabe ela não intuiu alguma coisa, quem sabe não está se casando por isso mesmo), mas em geral até os pensamentos se manifestam.


O cocô, ao contrário, não. Salvo um brevíssimo período de sua vida, quando a mamãe troca as suas fraldas, ele é só seu. E como o meu cocô daquele momento não devia ser tão diferente daquele que produzi no decorrer de minha vida pregressa, eis que naquele momento eu me reconectava com o eu mesmo dos tempos esquecidos e vivia a primeira experiência capaz de reunir com as inúmeras outras precedentes, mesmo aquelas dos tempos de menino, quando fazia minhas necessidades nas vinhas.

Talvez se olhasse bem em torno encontrasse ainda os restos dos cocôs feitos então e, triangulando da forma correta, o tesouro de Clarabela.

Mas parava por aqui. O cocô ainda não era minha infusão de tília – e bem que eu gostaria de ver: como pretendia levar adiante a minha recherche com o esfíncter? Para reencontrar o tempo perdido, se precisa é da asma, não da diarreia. A asma é pneumática, é sopro (mesmo dificultoso) do espírito: é para os ricos que podem se permitir quartos atapetados de cortiça. Os pobres, nos campos, não seguem com a alma, seguem com o corpo.


E no entanto, não me sentia deserdado mas contente, quero dizer, estava realmente feliz, de modo nunca experimentado depois do despertar. Os caminhos do Senhor são infinitos, disse a mim mesmo, passam até mesmo pelo buraco do traseiro.

sábado, 5 de outubro de 2013

Agualusa

Já reparaste que os melhores escritores angolanos são brancos ou mestiços, os melhores escritores sul-africanos são bóeres, os melhores escritores do mundo são judeus?

Há urgência naquilo que eles escrevem. Eles sofrem, estão doentes. Escrevem porque precisam saber quem são.



Do livro Estação das Chuvas, de José Eduardo Agualusa.

quinta-feira, 11 de julho de 2013

Top Ten bandas Japonesas

Pra decidir o primeiro lugar, não foi muito difícil: Spitz (ou スピッツ), uma banda com mais de 20 anos de existência e ultra respeitada na Japão. O som deles poderia ser definido como um pop-rock simples, mas se destacam de outras bandas pelas melodias e refrões que pegam sem soarem comerciais. O difícil foi escolher a música para representar aqui, pois todas canções deles são hits.

 2- Shiina Ringo - Honnou. Uma das mais espetaculares cantoras da história do Japão. Compõe música, escreve, toca, além de ser uma grande performer. Sua música passa por influências de jazz, rock, punk, pop. Camaleoa, se apresenta sempre de forma diferente, às vezes com o estilo sofisticado de uma Audrey Hepburn asiática, outras como uma pós-punk, mas sempre com sua marca pessoal até no estilo de cantar (é conhecida por estender os erres). Se não bastasse tudo isso, é linda. 3- Tokyo Jihen - Marounochi sadistic.
É a banda de Shiina Ringo, quando não está em carreira solo 4- Che-A - Pandora. Eu já tinha fechado esse top ten quando, na última hora, descobri Che-a. Um trio de garotas, apenas de baixo, piano e bateria. A ausência de guitarra e a preponderância do baixo e piano poderiam simplificar o som, mas o torna ainda mais poderoso. Elas fazem um jazz rock moderno, com o toque japonês, claro. Infelizmente só encontrei 3 músicas do grupo (uma melhor do que a outra), e soube que a banda não existe mais. 5- Asian Kung-fu Generation - Haruka Kanata. Rock japonês do bom. 6- Chara - やさしい気持ち. A voz da cantora e atriz Chara é inconfundível, caracterizada pelos sussurros alternando com agudos poderosos. O som é um pop alternativo, com pitadas de eletrônico

  7- Stereopony - Hitohira no hanabira. Um amigo canadense fã de anime que me apresentou essa banda de rock japonesa inteiramente formada por garotas

8- Yui - Again.

  9- Fripside - Decade. Fripside é outra banda conhecida por trilhas de anime. Faz um rock-pop-eletrônico com vocais femininos. Seus clips sempre são doidos.

  10- 9mm Parabellum Bullet – Living dying message. Um amigo japonês guitarrista me apresentou essa outra boa banda de rock japonesa Bonus track Não dá pra ser introduzido no mundo da música japonesa (se é que esse é o seu caso) sem conhecer aquela que é a mais arrebatadora banda de J-pop atual, que já influenciou outros grupos e cópias até na Coreia. É AKB48, um grupo formado por 48 jovens garotas. Seus clipes são mega produções em que, muitas vezes, aparecem apenas de bikini ou lingerie. Todo fã tem uma favorita. A minha é Yuko Oshima. AKB48 - ギンガムチェック

quarta-feira, 19 de junho de 2013

Porno Pop Pocket




Em dias normais, não leio e nem recomendo poesia. Mas, como raramente estou num dia normal, aqui vai um livro de poesias que não apenas li como gostei. Porno Pop Pocket (L&PM, 2004), de Paula Taitelbaum , pelo que o próprio nome indica, é uma coleção de poemas eróticos. Ou melhor, são mesmo mais pornô que exatamente eróticos, mas o que permeia boa parte do livro é uma espécie de humor sacana e o jogo esperto de palavras. Ou talvez o melhor do livro seja a maneira como a autora dosa a bagaceirice num tom de leveza e graça.  Paula diverte e surpreende a cada página. Mas é erótico? É pornô? Ambos? Ou é só poesia? Abaixo coloco alguns dos poemas do livro


Meu lugar preferido
é perto do seu ouvido
nas dobras da sua orelha
onde minha língua passeia
sem sair do lugar
é lá que enfio bem fundo
o verbo mais imundo
que consigo encontrar

Você esticado na cama
feito uma carreira de pó
tenho gana de lhe cheirar inteiro
feito louca, de uma vez só

Ele gosta d emulheres com falo
no meio das falas
com palavras que pingam
e frases que entram rasgando
ele gosta de mulheres que fodem
com as regras de gramática
que comem letras quando estão gozando

Ok, sou uma cadela
mas uma cadela de raça
tudo bem eu dar meu rabo
mas que não seja na praça.

O problema de ter cara de santa
é não ser chamada de puta
quando a saia levanta.

Tô cansada
de foda
cronometrada
queria horas
e mais horas
de cravada
depois dormir
em concha
encaixada
com a xota
cheia
e toda
inchada.

Silicone, espartilho
algemas e salto fino
tudo farsa
depois da festa
ela tira
o disfarce
desfaz a pose
e de posse
de seu pênis
à pilha
vai comer
a sua ervilha.

Na vulva vibra a larva
que logo será borboleta
sairá do seu casulo
vai virar uma buceta

Quantos litros da sua
porra será que já engoli?
Será que o suficiente
pra você deixar
de me tratar
feito um guri?

Do céu da minha boca
despencam
estrelas cadentes
você geme um pedido
com a cabeça
entre meus dentes.

Vagina
de eterna
menina
mil fodas
e continua
pequenina.

A regra é não dar trégua
comê-la de quatro
chamá-la de égua
a regra é segurar o arreio
e se ela tentar fugir
puxar com força seu freio.

Hoje eu vou sentar
e descansar da vida
vou sentar um pouco
e esquecer as feridas
Hoje eu vou sentar
sem pressa bem devagar
sentar num pau bem duro
Hoje eu vou
Eu juro


Fiz uma breve estatística de alguns termos relativos a partes do corpo encontrados no livro.
O pênis está em primeiro lugar, com 24 ocorrências:
Pau – 12
Caralho – 4
Pênis – 2
Falo, jebas, pica, instrumento, cabeça, bolas – 1
A genitália feminina aparece 19 vezes:
Boceta – 3
Vagina – 2
Xota – 2
Grelo, gruta, sulco, flor-de-lis, tulipa, rosa, xeca, vulva, clitóris, grandes lábios, buraco, orifício – 1
 
Outras palavras que merecem menção, dado o número de ocorrências são: pernas (10), língua (7), porra (6), boca (6).


sábado, 15 de junho de 2013

Lewis Carroll - fotografias

Lewis Carroll, autor do clássico Alice no país das maravilhas, tinha uma obsessão na vida além das histórias voltadas ao público infantil: a fotografia. No século 19, quando a arte e a técnica fotográfica ainda estavam nos seus primeiros passos, o escritor, sabe-se hoje, era ávido fotógrafo amador, chegando a montar um estúdio em casa e até a vender algumas fotos.

Um dos seus temas frequentes era crianças nuas. Isso lhe deu uma reputação póstuma não muito lisonjeira, inclusive com acusações de pedofilia. Sabe-se também que uma menina chamada Alice Lidell foi a sua grande musa para a sua obra clássica. Mas as cartas que trocou com ela foram todas queimadas pela mãe da garota. Também as páginas do seu diário no período em que a conheceu desapareceram depois de sua morte. O que resta, então, é apenas especulação. Mas vamos aos fatos, ou melhor, às fotos.

Carroll com Alice Lidell, sua musa

Alice Lidell







segunda-feira, 25 de março de 2013

Precisamos falar sobre Kevin

Em Precisamos falar sobre Kevin (Intrínseca, 2007, tradução de Beth Vieira e Vera Ribeiro) temos mais um exemplo de livro que, quando transformado em filme, perdeu 99% do que tinha de interessante. Sim, pois, mesmo que a narração da personagem Eva criada pela escritora americana Lionel Shriver seja discutível, o livro se sustenta muito mais pelos pensamentos e insights de Eva do que pela ação (mesmo que esta seja importante também). No filme, como os diálogos são escassos, o título perde totalmente o sentido. Abaixo coloco um trecho.
Ótima capa de warrakloureiro


Na verdade, li faz pouco que já existe uma cirurgia capaz de praticamente curar os pacientes que sofrem de Parkinson. Foi tamanho o sucesso que mais de uma pessoa operada acabou se matando. Sim, você leu certo: se matando. Adeus aos tremores, adeus às oscilações espasmódicas do braço que derrubam o vinho no restaurante. Mas também adeus aos doces olhares de simpática comiseração vindos de pessoas estranhas, adeus às explosões espontâneas de ternura por parte de cônjuges psicoticamente magnânimos. Os recuperados ficam deprimidos, se fecham em casa. Não conseguem lidar com isso: ser igual a todo mundo.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

The Walking Dead


Isso foi tirado da edição em inglês de The Walking Dead, a graphic novel escrita por Robert Kirkman.

Quantas horas sobram num dia quando não passamos metade delas assistindo televisão?
Quando foi a última vez que qualquer um de nós se esforçou de verdade para conseguir algo que queria?
Quanto tempo faz que qualquer um de nós realmente precisou de algo que queria?
O mundo que conhecíamos já era.
O mundo de comércio e necessidades frívolas que conhecíamos foi substituído por um mundo de sobrevivência e responsabilidade.
Uma epidemia de proporções apocalípticas varreu o globo fazendo com que os mortos se levantarem e se alimentarem dos vivos.
Em questão de meses, a sociedade desmoronou, sem governo, sem mercados, sem correio, sem TV a cabo.
Em um mundo comandado pelos mortos, somos forçados a finalmente começar a viver.



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Pra mim, os melhores filmes de zumbi não são aqueles cheios de sangue e violência com personagens bobocas e piadinhas irônicas. Bons filmes de zumbi mostram o quanto somos perturbados, nos fazem questionar nosso lugar na sociedade, e o lugar da nossa sociedade no mundo. Eles nos mostram sangue e violência e todas essas coisas bacanas também, mas há sempre uma tendência para a crítica social e a reflexão.


Mil vezes Madrugada dos Mortos que O Retorno dos Mortos vivos. Pra mim filmes de zumbi são dramas instigantes, a par com qualquer filme digno de Oscar que aparece todo ano. São filmes que fazem você questionar o tecido da nossa própria sociedade são o que eu gosto. E em bons filmes de zumbi você tem isso aos montes.
(Robert Kirkman)

Robert Kirkman, criador de The Walking Dead

quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Milan Kundera, capas


Cada um dos meus romances poderia ser intitulado A insustentável leveza do ser ou A Brincadeira ou Amores Risíveis, os títulos são intercambiáveis, eles refletem o pequeno número de temas que me obcecam, me definem e, infelizmente, me restringem. Fora esses temas, não tenho nada mais a dizer ou escrever.

















segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

King sobre Kubrick

Sou feio mas sou milionário
Em uma entrevista, o escritor best-seller Stephen King falou sobre o que achou da adaptação para o cinema que o consagrado cineasta Stanley Kubrick fez de seu livro O Iluminado, considerado por muitos um excelente filme.


O que você achou da adaptação de Stanley Kubrick do livro O Iluminado?








KING
Muito fria. Sem qualquer senso de investimento emocional na família da parte dele. Eu achei o tratamento de Shelley Duvall como Wendy... nossa, um grande insulto às mulheres. Ela é basicamente uma máquina de gritar. Não há nenhum senso de seu envolvimento na dinâmica da família. E Kubrick não parece ter qualquer ideia de que Jack Nicholson estava interpretando o mesmo papel de motoqueiro psicopata de todos os outros filmes que ele fez  - Hells Angels on Wheels, Rider O Wild Ride, The Rebel Rousers, Easy Rider. O cara é louco. Então, onde está a tragédia se o cara aparece para sua entrevista de emprego e ele já está maluco? Não, eu detestei o que Kubrick fez com o livro.

Kubrick ficou muito preocupado com a crítica

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Pergunte ao pó

Trecho do livro Pergunte ao pó, de John Fante (Editora José Olympio, 2003, tradução de Roberto Muggiati).


O protagonista, Arturo Bandini, é um aspirante a escritor que mora numa espelunca, sempre cheio de dívidas, mal conseguindo dinheiro pra comer. Aqui, se relaciona com um dos vizinhos.


Eu o xingava com palavrões violentos; logo perdi todo o respeito por ele. Sacudia sua cabeça vermelha e inchada, os grandes olhos com um ar deplorável. Mas nunca me ofereceu sequer os restos do seu prato. Dia após dia, eu trabalhava, contorcendo-me com o odor torturante de costeletas de porco fritas, bifes grelhados, bifes fritos, bifes à milanesa, fígado acebolado e todo tipo de carnes.

Um dia, sua mania de carne passou e a mania de gim voltou. Embriagou-se durante duas noites diretas. Podia ouvi-lo tropeçando pelo quarto, chutando garrafas e falando sozinho. Depois sumiu. Passou outra noite fora. Quando voltou, o cheque da sua pensão fora gasto e ele havia, de alguma forma, em algum lugar, não se lembrava, comprado um carro. Era um imenso Packard, com mais de vinte anos. Parecia um carro fúnebre, os pneus gastos, a pintura preta barata borbulhando ao sol quente. Alguém na rua Principal lhe vendera o carro. Agora estava quebrado, com um grande Packard nas mãos.

- Quer compra-lo? – disse.
- De jeito nenhum.

Estava deprimido, a cabeça estourando de uma ressaca.
Naquela noite, entrou no meu quarto. Sentou-se na cama, seus longos braços pendendo até o chão. Estava com saudades do meio-oeste. Falava de caça de coelho, de pescaria, dos bons velhos dias quando era garoto. Começou então com o assunto da carne.

- Que tal um bife grande e grosso? – disse, os lábios frouxos. Abriu dois dedos. – Grosso assim. Grelhado. Um monte de manteiga por cima. Queimado apenas o suficiente para dar um travo. Gostaria de um bife assim?

- Adoraria.
Levantou-se.
- Então venha comigo, vamos atrás de um bife.
- Você tem dinheiro?
- Não precisamos de nenhum dinheiro. Estou com fome.
Apanhei meu suéter e o segui pelo corredor até a viela. Entrou no carro. Hesitei.
- Aonde está indo, Hellfrick?
- Vamos lá – falou. – Deixe por minha conta.
Entrei ao lado dele.
- Sem problema – falei.
- Problema! – escarneceu. – Estou lhe dizendo que sei onde podemos encontrar um bife.

Rodamos ao luar de Wilshire para Highland e de Highland passando por Cahuenga Pass. Do outro lado, estava a planície achatada de San Fernando Valley. Encontramos uma estrada deserta saindo do calçamento e a seguimos através de eucaliptos altos até fazendas esparsas e pastos. Depois de um quilômetro e meio, a estrada terminava. Arame farpado e postes de cerca apareciam no brilho dos faróis. Hellfrick laboriosamente deu meia-volta no carro, colocando-o de frente para a estrada pavimentada que havíamos deixado. Saiu pela porta da frente, abriu a porta traseira e remexeu nas ferramentas debaixo da almofada do banco traseiro.
Debrucei-me e o observei.
- Que está fazendo, Hellfrick?
Levantou-se, um macaco na mão.
- Espere aqui.
   Passou por baixo de uma falha no arame farpado e atravessou o pasto. A uns cem metros, um celeiro destacava-se no luar. Então descobri o que ia fazer. Saltei do carro e gritei para ele. Mandou-me silenciar, raivoso. Eu o vi seguir na ponta dos pés em direção da porta do celeiro. Eu o xinguei e esperei tenso. Logo ouvi o mugido de uma vaca. Era um grito que dava pena. Ouvi então um baque e um arrastar de cascos. Pela porta do celeiro, veio Hellfrick. Sobre o ombro, carregava uma massa escura, que o fazia vergar. Atrás dele, mugindo sem parar, vinha uma vaca. Hellfrick tentou correr, mas a massa escura o limitava a uma marcha rápida. E a vaca ainda o perseguia, enfiando o focinho nas suas costas. Virou-se, chutando violentamente. A vaca parou, olhou em direção do celeiro, e mugiu de novo.
- Seu imbecil, Hellfrick. Seu desgraçado imbecil!
- Me ajude – falou.
   Ergui o arame farpado a uma altura que lhe permitiria passar com seu fardo. Era um bezerro, o sangue jorrando de um talho entre as orelhas. Os olhos do bezerro estavam arregalados. Eu podia ver a lua refletida neles. Era assassinato a sangue frio. Fiquei enojado e horrorizado. Meu estômago revirou quando Hellfrick jogou o bezerro no banco traseiro. Ouvi o corpo desabar, depois a cabeça. Fiquei enojado, muito enojado. Era puro assassinato.
   Em toda a viagem de volta, Hellfrick exultava, mas o volante estava pegajoso de sangue e uma ou duas vezes ouvi o bezerro escoiceando no assento traseiro. Segurei o rosto nas mãos e tentei esquecer o chamado melancólico da mãe do bezerro, o doce rosto do bezerro morto. Hellfrick dirigia muito rápido. Em Beverly, passamos disparados por um carro preto que rodava lentamente. Era uma patrulha policial. Cerrei os dentes e esperei pelo pior. Mas a polícia não nos seguiu. Estava enjoado demais para me sentir aliviado. Uma coisa era certa: Hellfrick era um assassino, e estava tudo encerrado entre nós. Em Bunker Hill, descemos por nossa viela e encostamos no espaço de estacionamento adjacente à parede do hotel. Hellfrick saiu.
- Agora vou lhe dar uma lição de açougueiro.
- Vá para o inferno – falei.
   Fiquei vigiando enquanto ele embrulhava a cabeça do bezerro em jornais, o jogava sobre o ombro e apressava-se pelo corredor escuro em direção do seu quarto. Espalhei jornais pelo chão sujo e ele largou o bezerro sobre eles. Riu de suas calças ensangüentadas, de sua camisa ensangüentada, de seus braços ensangüentados.
   Olhei para o pobre bezerro. Sua pele era malhada em preto e branco e tinha os tornozelos mais delicados. De boca ligeiramente aberta, aparecia uma língua rosada. Fechei os olhos e saí correndo do quarto de Hellfrick e joguei-me no chão do meu quarto. Fiquei ali e estremeci, pensando na velha vaca sozinha no campo ao luar, a velha vaca mugindo pelo seu bezerro. Assassinato! Hellfrick e eu estávamos acabados. Ele não precisava pagar a dívida. Era dinheiro manchado de sangue – não para mim.
   Depois daquela noite, fiquei muito frio com Hellfrick. Nunca mais visitei seu quarto. Algumas vezes reconheci a sua batida, mas mantive a porta trancada para que não pudesse entrar. Quando o encontrava no corredor, simplesmente grunhíamos. Devia-me três dólares, mas nunca cobrei.