O protagonista, Arturo Bandini, é um aspirante a escritor que mora numa espelunca, sempre cheio de dívidas, mal conseguindo dinheiro pra comer. Aqui, se relaciona com um dos vizinhos.
Eu o xingava com palavrões violentos; logo perdi todo o
respeito por ele. Sacudia sua cabeça vermelha e inchada, os grandes olhos com
um ar deplorável. Mas nunca me ofereceu sequer os restos do seu prato. Dia após
dia, eu trabalhava, contorcendo-me com o odor torturante de costeletas de porco
fritas, bifes grelhados, bifes fritos, bifes à milanesa, fígado acebolado e
todo tipo de carnes.
Um dia, sua mania de carne passou e a mania de gim voltou.
Embriagou-se durante duas noites diretas. Podia ouvi-lo tropeçando pelo quarto,
chutando garrafas e falando sozinho. Depois sumiu. Passou outra noite fora.
Quando voltou, o cheque da sua pensão fora gasto e ele havia, de alguma forma,
em algum lugar, não se lembrava, comprado um carro. Era um imenso Packard, com
mais de vinte anos. Parecia um carro fúnebre, os pneus gastos, a pintura preta
barata borbulhando ao sol quente. Alguém na rua Principal lhe vendera o carro.
Agora estava quebrado, com um grande Packard nas mãos.
- Quer compra-lo? – disse.
- De jeito nenhum.
Estava deprimido, a cabeça estourando de uma ressaca.
Naquela noite, entrou no meu quarto. Sentou-se na cama, seus
longos braços pendendo até o chão. Estava com saudades do meio-oeste. Falava de
caça de coelho, de pescaria, dos bons velhos dias quando era garoto. Começou
então com o assunto da carne.
- Que tal um bife grande e grosso? – disse, os lábios
frouxos. Abriu dois dedos. – Grosso assim. Grelhado. Um monte de manteiga por
cima. Queimado apenas o suficiente para dar um travo. Gostaria de um bife
assim?
- Adoraria.
Levantou-se.
- Então venha comigo, vamos atrás de um bife.
- Você tem dinheiro?
- Não precisamos de nenhum dinheiro. Estou com fome.
Apanhei meu suéter e o segui pelo corredor até a viela.
Entrou no carro. Hesitei.
- Aonde está indo, Hellfrick?
- Vamos lá – falou. – Deixe por minha conta.
Entrei ao lado dele.
- Sem problema – falei.
- Problema! – escarneceu. – Estou lhe dizendo que sei onde
podemos encontrar um bife.
Rodamos ao luar de Wilshire para Highland e de Highland
passando por Cahuenga Pass. Do outro lado, estava a planície achatada de San
Fernando Valley. Encontramos uma estrada deserta saindo do calçamento e a
seguimos através de eucaliptos altos até fazendas esparsas e pastos. Depois de
um quilômetro e meio, a estrada terminava. Arame farpado e postes de cerca
apareciam no brilho dos faróis. Hellfrick laboriosamente deu meia-volta no
carro, colocando-o de frente para a estrada pavimentada que havíamos deixado.
Saiu pela porta da frente, abriu a porta traseira e remexeu nas ferramentas
debaixo da almofada do banco traseiro.
Debrucei-me e o observei.
- Que está fazendo, Hellfrick?
Levantou-se, um macaco na mão.
- Espere aqui.
Passou por baixo de
uma falha no arame farpado e atravessou o pasto. A uns cem metros, um celeiro
destacava-se no luar. Então descobri o que ia fazer. Saltei do carro e gritei
para ele. Mandou-me silenciar, raivoso. Eu o vi seguir na ponta dos pés em
direção da porta do celeiro. Eu o xinguei e esperei tenso. Logo ouvi o mugido
de uma vaca. Era um grito que dava pena. Ouvi então um baque e um arrastar de
cascos. Pela porta do celeiro, veio Hellfrick. Sobre o ombro, carregava uma
massa escura, que o fazia vergar. Atrás dele, mugindo sem parar, vinha uma
vaca. Hellfrick tentou correr, mas a massa escura o limitava a uma marcha
rápida. E a vaca ainda o perseguia, enfiando o focinho nas suas costas.
Virou-se, chutando violentamente. A vaca parou, olhou em direção do celeiro, e
mugiu de novo.
- Seu imbecil, Hellfrick. Seu desgraçado imbecil!
- Me ajude – falou.
Ergui o arame
farpado a uma altura que lhe permitiria passar com seu fardo. Era um bezerro, o
sangue jorrando de um talho entre as orelhas. Os olhos do bezerro estavam
arregalados. Eu podia ver a lua refletida neles. Era assassinato a sangue frio.
Fiquei enojado e horrorizado. Meu estômago revirou quando Hellfrick jogou o
bezerro no banco traseiro. Ouvi o corpo desabar, depois a cabeça. Fiquei
enojado, muito enojado. Era puro assassinato.
Em toda a viagem de
volta, Hellfrick exultava, mas o volante estava pegajoso de sangue e uma ou
duas vezes ouvi o bezerro escoiceando no assento traseiro. Segurei o rosto nas
mãos e tentei esquecer o chamado melancólico da mãe do bezerro, o doce rosto do
bezerro morto. Hellfrick dirigia muito rápido. Em Beverly, passamos disparados
por um carro preto que rodava lentamente. Era uma patrulha policial. Cerrei os
dentes e esperei pelo pior. Mas a polícia não nos seguiu. Estava enjoado demais
para me sentir aliviado. Uma coisa era certa: Hellfrick era um assassino, e
estava tudo encerrado entre nós. Em Bunker Hill , descemos por nossa viela e
encostamos no espaço de estacionamento adjacente à parede do hotel. Hellfrick
saiu.
- Agora vou lhe dar uma lição de açougueiro.
- Vá para o inferno – falei.
Fiquei vigiando enquanto ele embrulhava a
cabeça do bezerro em jornais, o jogava sobre o ombro e apressava-se pelo
corredor escuro em direção do seu quarto. Espalhei jornais pelo chão sujo e ele
largou o bezerro sobre eles. Riu de suas calças ensangüentadas, de sua camisa
ensangüentada, de seus braços ensangüentados.
Olhei para o pobre
bezerro. Sua pele era malhada em preto e branco e tinha os tornozelos mais
delicados. De boca ligeiramente aberta, aparecia uma língua rosada. Fechei os
olhos e saí correndo do quarto de Hellfrick e joguei-me no chão do meu quarto.
Fiquei ali e estremeci, pensando na velha vaca sozinha no campo ao luar, a
velha vaca mugindo pelo seu bezerro. Assassinato! Hellfrick e eu estávamos
acabados. Ele não precisava pagar a dívida. Era dinheiro manchado de sangue –
não para mim.
Depois daquela
noite, fiquei muito frio com Hellfrick. Nunca mais visitei seu quarto. Algumas
vezes reconheci a sua batida, mas mantive a porta trancada para que não pudesse
entrar. Quando o encontrava no corredor, simplesmente grunhíamos. Devia-me três
dólares, mas nunca cobrei.
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