sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Milan Kundera fala sobre tradução

O texto abaixo é um trecho do livro A Arte do Romance (Nova Fronteira, 1988, tradução de Tereza Bulhões Carvalho da Fonseca), de Milan Kundera, um dos poucos livros de ensaios do autor tcheco.


Em 1968 e 1969, A Brincadeira foi traduzido em todas as línguas ocidentais. Entretanto, quantas surpresas! Na França, o tradutor reescreveu o romance enfeitando meu estilo. Na Inglaterra, o editor cortou todas as passagens de reflexão, eliminou os capítulos musicológicos, mudou a ordem das partes, recompôs o romance. Um outro país. Encontro meu tradutor: ele não sabe uma só palavra de tcheco. “Como você traduziu?” Ele responde: “Com meu coração”, e me mostra minha foto que tira de sua carteira. Ele era tão simpático que quase cheguei a acreditar que se podia realmente traduzir graças a uma telepatia do coração. Na verdade, era mais simples: ele tinha traduzido do texto reescrito em francês, assim como o tradutor na Argentina. Um outro país: traduziram do tcheco. Abro o livro e por acaso caio no monólogo de Helena. As longas frases, cada uma das quais ocupa e minha escrita um parágrafo inteiro, estão divididas em uma multidão de frases simples... O choque causado pelas traduções de A Brincadeira me marcou para sempre. Felizmente, mais tarde, encontrei tradutores fiéis. Mas também, infelizmente, menos fiéis... Contudo, para mim que praticamente não tenho mais o público tcheco, as traduções representam tudo. É por isso que, há alguns anos, me decidi enfim a pôr ordem nas edições estrangeiras de meus livros. Tal coisa não se fez sem conflitos nem sem fadiga: a leitura, o controle, a revisão de meus romances, antigos e novos, nas três ou quatro línguas estrangeiras que sei ler ocuparam inteiramente todo um período de minha vida...


O autor que se empenha em cuidar das traduções de seus romances corre atrás das inúmeras palavras como um pastor atrás de um rebanho de carneiros selvagens; triste figura para si mesmo, risível para os outros. Desconfio que meu amigo Pierre Nora, diretor da revista Lê Débat, compreendeu bem o aspecto tristemente cômico da minha existência de pastor. Um dia, com mal dissimulada compaixão, me disse: “Escreva afinal seus tormentos e escreva alguma coisa para mim. As traduções obrigaram você a refletir sobre cada uma de suas palavras. Escreva pois seu dicionário pessoal. Dicionário de seus romances. Suas palavras-chaves, suas palavras-problemas, sus palavras-amores...”

Eis aí, está pronto.

FEIO

Após tantas infidelidades de seu marido, tantas histórias penosas com tiras, Tereza diz: “Praga ficou feia.” Tradutores querem substituir a palavra feia pelas palavras “horrível” ou “insuportável”. Parece-lhes ilógico reagir a uma situação moral com um julgamento estético. Mas a palavra feio é insubstituível: a onipresente feiúra do mundo moderno, misericordiosamente velada pelo hábito, surge brutalmente no menor de nossos momentos de desespero.

FLUIR

Em uma carta, Chopin descreve sua estada na Inglaterra. Ele toca nos salões e as senhoras exprimem sempre seu encantamento com a mesma frase: “Oh, que bonito! Flui como a água” Chopin se irritava com isso, como eu quando ouço apreciar uma tradução com a mesma fórmula: “isto flui bem.” Os adeptos da tradução “que flui bem” objetam sempre aos meus tradutores: “Não se diz isto desta forma em alemão (em inglês, em espanhol, etc.)!” Eu lhes respondo: “Mas em tcheco também não se diz assim!” Roberto Calasso, meu muito caro editor italiano, repete: reconhece-se uma boa tradução não por sua fluidez mas por todas essas fórmulas insólitas e originais (que “não se dizem”) que o tradutor teve a coragem de conservar e defender. Até mesmo o insólito da pontuação. Abandonei outrora um editor apenas porque ele tentava mudar meus pontos-e-vírgulas em vírgulas.


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