Parece que só no século 21 a literatura japonesa começou a ser mais difundida no Brasil, com traduções de Haruki Murakami, Kobo Abe, Yasunari Kawabata, Kenzaburo Oe e tantos outros. Um desses outros é 谷崎 潤一郎, ou Junichiro Tanizaki.
Nascido em 1886, Tanizaki era um defensor da cultura tradicional japonesa, negando a crescente influência ocidental na sua época. Mas não imagine que daí nasce uma literatura atrelada a rígidos padrões sociais orientais. Seus livros invariavelmente tratam de sexo, relacionamentos, fetiches e intimidade, temas caros a diversos autores. Porém, com Tanizaki são tratados com uma amoralidade rara no ocidente. Sua linguagem crua e direta causa desconforto ao leitor, justamente por deixar os personagens e as situações mais próximos da realidade do que gostaríamos.
Há quem prefira urtigas
No ano 2000, o autor britânico Hanif Kureishi lançou Intimidade, um livro que fala de um casal em crise: o homem decide se separar da mulher (com quem tem um filho) e passa o livro inteiro (cerca de 24h) tentando se convencer da sua decisão. Nesse meio tempo, é aconselhado por um amigo do casal, que apresenta um contraponto aos seus argumentos. Entram na história também aspectos sociais, culturais e religiosos. O título desse livro de Tanizaki é um dos mais instigantes que já vi. O curioso é que exatamente 70 anos antes, Junichiro Tanizaki havia lançado um livro com tema muito semelhante, apenas com pequenas variações: um casal com um filho está prestes a se separar, e o marido tem dúvidas, então conversa com um amigo da família,que apresenta um contraponto aos seus argumentos. A diferença é que Tanizaki ousou mais. Em Há quem prefira urtigas [Companhia das Letras, 2003] o casal tem relacionamentos extra conjugais consentidos, e a indecisão se arrasta por muito mais que apenas um dia. Como em Shakespeare, seus diálogos são enxutos, sem sobras, funcionais, por vezes irônicos e sarcásticos. As personagens de Tanizaki não se desesperam diante do anormal em suas vidas, ele deixa esse papel para o leitor.
Abaixo, alguns trechos do livro. A tradução diretamente do japonês é da ótima Leiko Gotoda.
(aqui o marido fala com um amigo sobre Misako, sua esposa, e Aso, o amante dela)
– Resumindo, você achou que a melhor época para a separação é agora, quando o tempo começa a esquentar?
– Mais ou menos. Resta ainda um pouco de frio no ar, mas o calor já vem chegando. Logo as cerejeiras vão florir e brotos verdes despontarão por toda parte... O ambiente pode abrandar a tristeza.
– A opinião é apenas sua?
– Não. Misako também pensa como eu. Ela já disse: “Se for para nos separarmos, quero que seja na primavera. É a melhor época do ano”.
– Ah, essa não! Está querendo me dizer que, agora, vão esperar um ano inteiro até a próxima primavera?
– Não necessariamente. O verão também é interessante... O problema é que a minha mãe faleceu no mês de julho, em pleno verão, lembra? Nessa época, a paisagem inteira se ilumina e se enche de cores. Mas, naquele ano específico, senti, apesar de tudo, não haver estação mais triste que o verão. Eu não conseguia conter as lágrimas toda vez que contemplava a vegetação viçosa em tardes de calor sufocante, lembro-me disso muito bem...
– Está vendo? É por isso que insisto: não adianta esperar até a primavera! As cerejeiras podem estar floridas, mas, se você está triste, chora ao vê-las!
– Pode até ser que você tenha razão, mas... sem época ideal estabelecida, o leque de escolha se amplia tanto que me perco por completo...
– Estou começando a achar que esse divórcio nem vai acontecer.
– Acha mesmo?
– O que eu acho ou deixo de achar não é importante. Quero saber o que você acha.
– Pois não faço a menor ideia do que vai acontecer. Sei apenas que existem motivos absolutamente claros para uma separação. Se Misako e eu já não nos dávamos bem anteriormente, agora que ela começou esse caso com o Aso – caso esse cujo início, diga-se de passagem, não só permiti, como também incentivei – não há condição alguma para continuarmos casados. Aliás, já não estamos casados, essa é a verdade. Frente a frente com essa verdade, tanto eu como Misako não sabemos que caminho tomar: se o da tristeza momentânea ou o do sofrimento para o resto de nossas vidas. Melhor dizendo, a resolução já está tomada. Falta-nos apenas coragem para levá-la avante.
– Mas, se vocês já não são mais marido e mulher, o divórcio significaria apenas não morar na mesma casa. Esse tipo de raciocínio não lhe traz alívio?
– Eu me esforço para raciocinar dessa maneira, mas não ajuda muito.
– E também temos que considerar o Hiroshi. Mas até mesmo para ele a separação vai significar apenas que o pai e a mãe vão morar em casas diferentes, não quer dizer que ele deixe de ser o filho querido da Misako.
– É óbvio que existem famílias em circunstâncias semelhantes no mundo inteiro. Diplomatas ou funcionários designados a servir no interior costumam seguir sozinhos para seus postos ou deixam filhos com parentes em suas cidades natais. Sem falar nos casos das crianças do interior que vêm morar sozinhas na cidade grande para continuar seus estudos. Se compararmos, Hiroshi está em melhor situação, sei disso. No entanto...
– Em outras palavras, é você que está triste. Mas a realidade não é tão triste quanto você imagina.
– Pois tristeza é isso, não é? Subjetiva, afinal de contas... O problema principal é que Misako e eu não conseguimos nos odiar mutuamente. Como seria fácil, se conseguíssemos... Em vez disso, cada um acha que o outro está coberto de razão. Isso é mal...
– A solução mais fácil e prática seria Misako e Aso se casarem, sem nada dizer a você.
– Tempos atrás, Aso parece ter proposto essa solução, mas, pelo jeito, Misako respondeu entre risadas que só conseguiria tomar uma atitude tão ousada se a drogassem e a levassem embora enquanto dormia.
– E se você provocasse uma briga com ela?
– Também não daria certo porque estaríamos representando e saberíamos disso. Não adianta berrar um para o outro: “Saia já da minha casa!” e “Saio com muito prazer!” porque na hora de sair mesmo acabaríamos chorando...
– Vocês dois são realmente problemáticos! Cheios de histórias até para se separar...
– Bom seria se houvesse algo assim como um entorpecente psicológico... Você sentiu ódio da Yoshiko por ocasião do seu divórcio?
– Eu a odiei, mas ao mesmo tempo tive pena dela, entende? Ódio real, que vem do fundo da alma, um homem só é capaz de sentir por outro homem.
– Desculpe-me se o ofendo, mas... é menos complicado divorciar-se de mulheres que, no passado, já foram “profissionais da noite”, não é? A maioria delas é decidida, já conheceram e se separaram de muitos homens e, se quiserem, podem voltar facilmente à profissão anterior...
– Ainda assim, a separação não é fácil.
Por instantes, Takanatsu manteve o cenho franzido, mas logo recuperou a animação inicial e disse:
– Essa questão é semelhante à das estações do ano. Na hora de separar, não existem parceiras fáceis ou difíceis, do mesmo jeito que não existem estações propícias ou desfavoráveis, entendeu?
– Tem certeza? A mim me parece que as do tipo rameira são mais fáceis que as do tipo caseira. Será impressão minha?
– Pois as rameiras são até mais comoventes pelo próprio fato de aparentarem frieza. Há também um outro problema a considerar: o caminho que tomam depois do divórcio. É um alívio quando conseguem casar de novo e sossegar, mas, se retornam à antiga profissão, comprometem de certa maneira a reputação dos ex-maridos, entende? Eu mesmo me posiciono acima dessas picuinhas, claro... Seja como for, você há de convir que, rameiras ou caseiras, ninguém consegue, sem tristeza, separar-se de uma mulher.
Por instantes, os dois apenas remexeram em silêncio o cozido na panela. Juntos, não haviam ainda esvaziado duas botijas de saquê, mas a suave embriaguez era persistente, afogueava-lhes o rosto e lembrava a aproximação da primavera.
Muitas páginas adiante, num novo diálogo de Kaname com Takanatsu, a situação continua:
– Por um lado você reclama que é difícil se separar dela, e, por outro, age dessa maneira totalmente irresponsável. Você é displicente demais!
– Displicente sempre fui. Mas penso que cada indivíduo pode ter seu próprio padrão ético e viver de acordo com ele.
– Pode ser. E, nesse caso, o seu diz que a displicência é uma virtude?
– Virtude talvez não seja, mas pessoas que não têm capacidade decisiva não deviam tomar decisões à força contrariando a própria natureza. Pois, toda vez que tentam fazer isso, a dose de sacrifícios aumenta inutilmente e traz consequências desagradáveis. Pessoas displicentes devem também estabelecer o curso de ação mais adequado ao seu temperamento. E, aplicando a minha teoria ética à situação atual, concluo que, se o bem maior é o divórcio, basta apenas que eu o alcance no final, não importa quão tortuoso seja o curso para se chegar a ele. Na verdade, acho até que eu podia ser um pouco mais displicente.
– Desse jeito, você é capaz de levar a vida inteira para alcançar seu bem maior.
– Pois já pensei seriamente nisso. Dizem que adultério era um fenômeno corriqueiro na aristocracia ocidental. Todavia, entre eles o adultério não era praticado às ocultas, mas tacitamente reconhecido pelos cônjuges. Eram casos semelhantes ao meu. Pois, se a sociedade japonesa permitisse, eu mesmo não me incomodaria de passar a vida inteira na situação atual.
– Tais costumes estão ultrapassados no Ocidente. A religião perdeu o poder de manter os casais unidos, entendeu?
– Não era somente a religião que os mantinha unidos. As pessoas talvez temessem romper abruptamente os laços com o passado, quem sabe?
– Você tem o direito de fazer o que quiser. Eu, porém, não vou mais me preocupar – disse Takanatsu asperamente, apanhando o livro caído no chão.
– Por que não?
– É óbvio, não é? De que maneira um estranho pode intervir num processo de divórcio tão mal definido?
– Você vai me deixar em apuros!
– Paciência.
– Se você nos abandonar, estaremos perdidos de verdade. A situação se tornará ainda mais confusa! Vamos, não nos abandone, eu imploro.
– De um jeito ou de outro, vou esta noite para Tokyo com Hiroshi. – declarou Takanatsu, folheando o livro friamente.