Quando leio um romance ou um conto novo de algum autor consagrado, tento fazê-lo como se fosse a obra de um desconhecido, para não me influenciar no julgamento da leitura. Uso esse exercício para evitar uma coisa que eu vejo seguidamente por aí: García Márquez escreve "Era uma vez..." e já há milhares de seguidores exclamando: "É gênio!" "Incrível a habilidade dele com as palavras!", ou esse mesmo tipo de leitor, diante da capa do novo livro do Saramago na gôndola da Livraria Cultura, já se entusiasma: "Bárbaro, bárbaro!".
Pois o autor com quem mais me vali do artifício "leia como se fosse um novato" foi Rubem Fonseca. E é surpreendente aplicar essa estratégia de leitura com sua obra pois, muitas vezes, o texto parece justamente de um novato de pouco talento que, nas ânsia de imitar o estilo do seu mestre, acaba incorrendo no exagero, na repetição dos temas, no exibicionismo lexical, enfim, num pastiche gratuito. Para deixar o leitor decidir, coloco abaixo alguns trechos de livros do Fonseca. (Ah, não consigo me esquecer de uma colega de faculdade, anos atrás, que ficou indignada por ter que ler Rubem Fonseca. As palavras dela depois da leitura foram: "Fiquei chocada." Meu conselho? Vá ler Jane Austen.)
Do conto “Placebo”, do Livro O buraco na parede:
O primeiro objeto que comprei foi um relógio. Isso não parece nada de mais, mas eu era muito pobre, tinha nove anos e o dinheiro tinha sido roubado da minha avó. Eu mantinha o relógio escondido e esperava todo mundo dormir para acender uma vela de madrugada e olhar o ponteiro de segundos se mover, ouvir o tictac. O primeiro relógio portátil, invenção de um alemão no século XVI, tinha apenas um ponteiro, o de horas. Naquele tempo os minutos eram coisas desprezíveis. Antes, os relógios não tinham nem ponteiros nem mostradores e funcionavam como carrilhões apenas. E ainda antes, existiam apenas relógios de sol, ampulhetas, brinquedos, não havia pressa, não havia necessidade de marcar o tempo, nada de importante podia ser feito em minutos, nem mesmo
Do conto Carpe diem, do livro Histórias de amor
Ele diz que só vê os filmes bons, mas quem só vê os filmes bons não gosta de cinema.
O que seria do mundo se o cinema não tivesse sido inventado?
Horrível.
Do conto Copromancia, do livro Secreções, excreções e desatinos:
Durante algum tempo conservamos e analisamos as minhas fezes e discutimos a sua fenomenologia. Um dia, estávamos na casa de Anita e ela me chamou para ver suas fezes no vaso sanitário. Confesso que fiquei emocionado, senti o nosso amor fortalecido, a confiança entre os amantes tem esse efeito. Infelizmente o aparelho sanitário de Anita era do tal modelo alto e afunilado, e isso prejudicara a integridade das fezes que ela me mostrava, causando uma distorção exógena que tornara a massa ilegível. Expliquei isso para Anita, disse-lhe que para impedir que o problema voltasse a ocorrer ela teria que usar o meu vaso especial. Anita concordou e afirmou que ficara feliz ao contemplar as minhas fezes e que ao mostrar-me as suas se sentira mais livre, mais ligada a mim.
Do livro Diário de um fescenino
“O diálogo é sabidamente um recurso de escritores medíocres.”
“Mulher é bom, mas dá trabalho.”
“Todas as verdades são velhos clichês, as mentiras é que conseguem às vezes ser originais.”
“Os escritores são maus amantes, maus amigos, má companhia.”
“Não é fácil falar e ainda mais escrever sobre as mulheres, a sensibilidade e a mente delas são muito mais complexas e ricas do que as nossas, dos machos.”
“Os únicos vendedores de sexo com características singulares são os travestis, que vivem no mundo da fantasia. Putas a veados do mundo real são iguais aos seus vizinhos.”
“Teoricamente um sujeito que lê não pode ser estúpido. O indivíduo que vive na frente da televisão apertando o controle remoto, esse, sim, é indubitavelmente um bestalhão. Se ainda não for, depois de algum tempo se tornará um. Mas, um leitor?”
“Muitos escritores se mataram e outros ainda vão se matar, talvez até eu mesmo, essa profissão costuma levar à depressão, à loucura, ao alcoolismo, às drogas e ao suicídio.”
“Eu não conheço um sujeito com sucesso na profissão que não esteja engordando.”
“Por que você se tornou escritor?”
A única resposta inteligente para esta pergunta é aquela do Montalbán, tornei-me escritor para ficar alto e bonito."
“Não procure me entender pelo que escrevo nos meus livros, por favor.”
Capítulo 2 de maio:
Almocei com o Pedro Martins, meu colega de ginásio. Hoje ele é um advogado tributarista. Não tenho muita convivência com os meus amigos, não tenho assunto com eles, mesmo com o Pedro, que conheço desde que éramos adolescentes. Não me lembro de jamais ter me sentado à mesa com amigos ou conhecidos numa tarde de sábado, ou outro dia e hora qualquer, para beber e conversar. A companhia masculina é muito chata. Com o Pedro Martins eu almoço uma, duas vezes por ano, por insistência dele. É um bom sujeito, inteligente, supõe ser um lúcido e isento observador da sociedade, mas isso não existe, o sujeito é sempre influenciado por sua libido, ideologia, religião, etnia, idade, condição sócio-econômica, tônus muscular, até pelo diâmetro abdominal. O Pedro, quando garoto, tinha o apelido de Gralha, era muito magro, raquítico mesmo. Depois do ginásio ele foi estudar direito e eu outra coisa. Fiquei uns oito anos sem vê-lo e quando nos reencontramos quase não o reconheci. Ele tinha se tornado um sujeito parrudo, de pescoço e braços grossos, peito dilatado. Explicou que era musculação. Fazia musculação todos os dias, antes de ir trabalhar, e às vezes repetia algumas “séries específicas, só perna, só braço, só peito” à noite, antes de ir para casa. Ele entrou na minha frente no restaurante e notei que ele caminhava com as pernas retesadas e afastadas uma da outra, como as pernas traseiras de um cão dobermann. Pedro tem uma mulher encantadora, no entanto busca pretextos para sair de casa, não para encontrar com outra, como todo homem casado agarra com unhas e dentes as oportunidades para se livrar, de maneira bem-comportada, da presença da esposa, nem que seja por um tarde.
19 de agosto
Byron anotou no seu diário: “Só Deus sabe as contradições que este diário pode conter. Se sou sincero comigo mesmo (infelizmente mente-se mais para si do que para os outros), cada página deve invalidar, refutar e inteiramente repudiar a que a antecede”.
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