Itinerário da Derrota já começa bem pela própria ideia do livro, que foge dos chavões esportivos e do puxa-saquismo nacionalista. A capa ja diz bastante: um homem com a camisa da seleção brasileira exibe o número zero estampado às suas costas. É a quantidade de vezes que o Brasil havia vencido um campeonato mundial desde a saída de Pelé (sua última participação foi na Copa de 70, no México) até a de 1990, na Itália. Assim, sai a exaltação dos vencedores e entra a reflexão contida dos perdedores. Saem os vitoriosos com seu olhar de altiva soberba e entram aqueles que ficam para trás, juntando o que sobrou da festa.
Trechos do livro:
Correio do Povo 8 de outubro de 1972
O futuro do futebol sem Pelé é o advento de uma era mecanicista, de repetições periódicas, de estereótipos, de planícies de uniformidade, vastidões de mesmices. Será o surgimento do jogador comum, todos bons e aplicados, compenetrados cumpridores das tarefas de campo. Mas nenhum brilho demasiado, qualquer fulguração, despropósito, loucura ou invenção. Apenas o brilho certo do jogo bem realizado, no acordo do modelo e do estabelecido. A emoção nos estádios será mais contida, seremos mais quietos e não haverá o encanto e o fascínio da identificação: o torcedor vai ficar distante, esfriado, vendo homens comuns errando, acertando a custo, se esforçando pelo pouco e pela má gratificação da bola, assim como ele passa a semana.
Correio do Povo 12 de julho de 1977
De repente, levantaram-se muitos, apanharam as máquinas fotográficas, as folhas de papel, eu pus o braço no ombro do Chico de Assis, da Bandeirantes, e disse: vamos. Foi quando um velho fotógrafo deu um grito com o garoto:
- Levanta daí, moleque, chegou a seleção.
Podia ser brincadeira, mas não era. O velho profissional estava paramentado, rijo, enérgico nas suas pernas finas, e foi categórico na segunda frase:
- Seleção é coisa importante, seu!
E saiu resmungando pelo túnel.
O garoto abriu bem os olhos, fez uff, e também seguiu pelo mesmo túnel em que seguiam todos. Ao menos eu e o Chico, me lembro, sorríamos. Os demais estavam diante da seleção como uma condecoração no peito. O garoto é que fazia mais: ele suspirava.
Zero Hora 5 de maio de 1982
Aqui trechos das colunas publicadas antes e após a inesquecível e traumática derrota para a Itália por 3X2:
Zero Hora 3 de julho de 1982
O Brasil, mais uma vez, deu uma demonstração de que nesta Copa da Espanha, ninguém é melhor e ninguém pode vencê-lo.
Zero Hora 4 de julho de 1982
Faltam três jogos para o Brasil ser campeão. Não tenho mais dúvida alguma depois de ver com atenção a todos os pretendentes: o Brasil só pode perder para si mesmo. A diferença é muito grande.
Zero Hora 6 de julho de 1982
Faltou à seleção mais do que humildade no pequeno Estádio Sarriá. Faltou, digamos, malícia. Não sei como escolher as melhores palavras. Estou cansado e triste. Mas talvez também não esteja arrependido. A seleção pode ser odiada hoje, mas eu a amei fervorosamente. E como eu, todos vocês. Por que transformar este cálido amor de todos nós no ódio ressentido desta noite?
O que sei é que a Copa do Mundo perdeu seu mais autêntico time de futebol. O melhor time de futebol que não soube ganhar um jogo contra a Itália.
Após a derrota para a França, na Copa de 86:
Zero Hora 22 de junho de 1986
(Essa vitória da França me faz muito mal. Muito mal. Sei melhor do que muitos que o futebol foi exaltado, que houve uma celebração dele a cada jogada e desfecho. Mas sou brasileiro e me vergo com dores pelo corpo.
A verdade do futebol é uma lixa, um pedaço de pau, e fala francês ao meu ouvido como se eu fosse um preso político e quisessem a minha confissão. Nada tenho a confessar senão que fui vencido com a nossa seleção. Helas.)
Estive sentado no mercado público dessa cidade. Mesas simples com toalhas de plástico, uma senhora gorda que sorri para mim e pergunta se quero comer. São três horas da tarde, estou sozinho, um pouco triste. Sim, quero comer. A senhora sorri satisfeita. Ela tem panelas de alumínio muito grandes sentadas em cima da chama de gás. Espicho o pescoço, olho para dentro de uma delas. Pozole? Pergunto. Sim, era pozole, um sopão de milho que ferve e apetece.
(...) Vou sair à rua agora, vou sentar na praça. Esse sentimento do jogo eu quero gozar numa solidão indispensável. Os tapatios, terra da minha solidão, gostam das praças, sentam nelas para nada, apenas pelo prazer de serem vistos. Eu nesse banco fico quieto e me revejo continuadamente como um assistente do que sempre vi e só aos poucos vou decifrando em mim mesmo.
Depois de ser eliminado pela Argentina, na Copa da Itália:
Zero Hora 26 de junho de 1990
Há calças, sapatos e meias. Cabelos penteados e conversação miúda. Não se grita mais, não se canta nem se toca tamborim. As bandeiras estão enroladas, sujas e abandonadas. A passagem de avião, o bilhete do trem, o recibo do carro alugado substituem a entrada para o estádio. Cem dólares? Qualquer coisa. Não existe mais pasta, procciuto, latte, capuccino, fragola, corso, via, parco, arrosto, pomodoro, nada mais. Feijão, arroz, filé com fritas, este é o único futuro confiável no bairro em que sempre se viveu. Mamma, não. Mãe. Isso: mãe. Nada mais vai existir. O futebol morreu, nunca mais. Será devorado pelos vermes. Vai desaparecer debaixo da grama. Nunca mais se saberá como foram aqueles dias. Muito menos que Turim algum dia existiu, foi bela, reveladora, cheia de arcadas dos príncipes, de parques que se chamavam Valentino, jardins, mulheres e homens orgulhosos nas sorveterias e nas livrarias sofisticadas. Tudo já desapareceu. As insistentes camisas amarelas com o número dez são agora camisas como todo mundo usa.
O que já disseram:
Armando Nogueira
Pouca gente no esporte usa a faculdade de pensar com a lucidez e o equilíbrio que distinguem a obra do jornalista e escritor Ruy Carlos Ostermann.
Nesse momento, está nascendo o livro dele. Tive o privilégio de ler os originais e confesso que saí da leitura tocado de lirismo, de bom-humor, de saudade; tocado, enfim, de todas as emoções que tanto enriquecem o universo do esporte no qual Ruy aprendeu e tem transmitido valiosas lições de vida.
Tabajara Ruas
Ruy Carlos Ostermann foi e é o maior cronista esportivo brasileiro não só por saber ver com agudez e isenção. E nem pela curva da frase, pelo topázio da palavra acariciada, pela concisão ou pelo delírio, mas pela qualidade de seu cotidiano exercício de estética e ética.
Ricardo Russo
Este cronista não é apenas um escrevinhador de futebol. Dizem que, às vezes, usa o esporte como meio. Se, depois da derrota doída para a França, o amigo procurar uma crônica redentora, falando de táticas e erros técnicos, encontrará um professor distraído entre comidas, viagens ou plantas. É uma maneira de encarar a dor. Portanto, não espere um livro comum, nem poderia sê-lo.
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