Um livro fácil de ler, mas difícil de escrever. É a impressão que fica ao nos depararmos com a estrutura de Solenar (Movimento, 2005), segundo livro do jovem escritor Rafael Bán Jacobsen. A narrativa de 219 páginas começa em 1954, com o relato de Henrique Kolling, jornalista que viaja à cidade interiorana de Passo dos Tropeiros para investigar uma tragédia ocorrida trinta anos antes com a tradicional família Solenar. As páginas de sua investigação na cidade são intercaladas com cartas e trechos de diários dos personagens envolvidos na misteriosa tragédia familiar. E é nesse ponto que começa o jogo do escritor com o leitor.
Aquilo que em princípio parece apenas um quebra-cabeças que se monta com paciência, com cada peça contribuindo para a construção da imagem final, se mostra um engodo: as peças se encaixam perfeitamente, mas a paisagem que aparece está encoberta por uma fina névoa que aos poucos se dissipa, para mostrar uma outra imagem novamente. Isso porque percebemos que nem todos os relatos são confiáveis. Diante das informações desencontradas, ou mesmo inverossímeis, como saber o que é relato verídico e o que é delírio, como saber onde está a verdade, se é que ela existe? Byron teria escrito, em seu diário: “Só Deus sabe as contradições que este diário pode conter. Se sou sincero comigo mesmo (infelizmente mente-se mais para si do que para os outros), cada página deve invalidar, refutar e inteiramente repudiar a que a antecede”.
Diferente de outros da nova geração de autores gaúchos, Jacobsen prima pelo esmero da construção da frase, valorizando cada escolha lexical. Outra coisa que chama a atenção no livro é a caracterização que o autor faz de cada personagem, não apenas nos aspectos físico e psicológico, mas pelos diferentes escritos. Há um menino de 13 anos, seu irmão mais velho, uma velha senhora e outros, e cada um tem seu estilo próprio de escrever (com algum destaque para o diário de Ismael). O fato estranho é que todos escrevem bem.
Trechos de Solenar:
Do Diário de Ismael Liedke Solenar, dia 19 de novembro de 1924:
“(...) Despertei afogado na escuridão, com a garganta queimando; ela estava em meu quarto, eu podia sentir, ou talvez fosse apenas um rato, visitante sem convite nesta madrugada de ruídos rastejantes. Quieto, até as pontas geladas dos dedos, estava novamente confinado ao sepulcro de meus ossos, desejando que a angústia acabasse. Pensei no internato, na voz do professor longe dos meus ouvidos – a água oxigenado misturada ao sangue do rato... –, no animal morto sobre minha classe, em coisas tolas que agora tomavam novo significado. Os demais garotos pareciam atentos, perplexos ante a química da vida, enquanto eu me indagava sobre a morte, a inércia fatal induzida pelo clorofórmio, a boca entreaberta no último hausto, todos detalhes físicos de que se veste o não existir. Viver, morrer, a verdade que sustenta o paradoxo é uma só, um ciclo perpétuo e inviolável de destinos trançados. A única diferença entre o internato e a estância é que, aqui, os ratos ainda vivem.”
Outro trecho:
Do Diário de Ismael Liedke Solenar, primeiro de dezembro de 1924:
“(...) Lá dentro, surpreendentemente, um calor úmido me envolveu, queria ficar ali, para sempre, e ela, acomodando-se em um canto, trouxe-me ao seu colo. O abraço quente me envolvia enquanto arrepios trêmulos percutiam-me os músculos; o coração que escutava bater junto ao meu ouvido parecia ser o mesmo que me dava vida. Então, banhados pela luz do estranho luar, revelou-me seus seios claros, ansiosos, num pulsante convite prontamente correspondido pela fome de minha boca. Pus-me a sugar com avidez, feito uma criança, como se assim pudesse não só matara a sede de tantos dias perdido no deserto mas também toda fome que viera ao mundo; e, num crescente desespero, prisioneiro do delírio, enterrei meus dentes na pele, rasguei-a,sentindo um líquido espesso inundar minha garganta. E quanto mais lhe devorava o peito, mais forte se fazia seu abraço; quanto mais o sabor confuso de sua carne me convulsionava a língua, mais o meu desejo se aguçava – até asfixiar-me, uma cascata de sangue a inundar os pulmões. Meu tórax se comprimia, as artérias do pescoço se dilatavam, grossas feito cordas, e ela suspirou: a carne que comes e o sangue que bebes são os mesmos teus.
Acordei sentindo a umidade abundante dos lençóis, atirei-os longe.”
O que já disseram:
Lea Masina:
“Todos os ingredientes que se esperam de um bom romance aí estão: amores conflituosos, relações incestuosas, perseguições e ódios implacáveis, medo, crueldade, ambição, preconceito, sofrimento e morte. Tudo isso gestado pelas personagens que, ao registrar seus sentimentos, constroem-se umas às outras, completando os fragmentos dos relatos como quem tece um bordado de fina trama.”
Aquilo que em princípio parece apenas um quebra-cabeças que se monta com paciência, com cada peça contribuindo para a construção da imagem final, se mostra um engodo: as peças se encaixam perfeitamente, mas a paisagem que aparece está encoberta por uma fina névoa que aos poucos se dissipa, para mostrar uma outra imagem novamente. Isso porque percebemos que nem todos os relatos são confiáveis. Diante das informações desencontradas, ou mesmo inverossímeis, como saber o que é relato verídico e o que é delírio, como saber onde está a verdade, se é que ela existe? Byron teria escrito, em seu diário: “Só Deus sabe as contradições que este diário pode conter. Se sou sincero comigo mesmo (infelizmente mente-se mais para si do que para os outros), cada página deve invalidar, refutar e inteiramente repudiar a que a antecede”.
Diferente de outros da nova geração de autores gaúchos, Jacobsen prima pelo esmero da construção da frase, valorizando cada escolha lexical. Outra coisa que chama a atenção no livro é a caracterização que o autor faz de cada personagem, não apenas nos aspectos físico e psicológico, mas pelos diferentes escritos. Há um menino de 13 anos, seu irmão mais velho, uma velha senhora e outros, e cada um tem seu estilo próprio de escrever (com algum destaque para o diário de Ismael). O fato estranho é que todos escrevem bem.
Trechos de Solenar:
Do Diário de Ismael Liedke Solenar, dia 19 de novembro de 1924:
“(...) Despertei afogado na escuridão, com a garganta queimando; ela estava em meu quarto, eu podia sentir, ou talvez fosse apenas um rato, visitante sem convite nesta madrugada de ruídos rastejantes. Quieto, até as pontas geladas dos dedos, estava novamente confinado ao sepulcro de meus ossos, desejando que a angústia acabasse. Pensei no internato, na voz do professor longe dos meus ouvidos – a água oxigenado misturada ao sangue do rato... –, no animal morto sobre minha classe, em coisas tolas que agora tomavam novo significado. Os demais garotos pareciam atentos, perplexos ante a química da vida, enquanto eu me indagava sobre a morte, a inércia fatal induzida pelo clorofórmio, a boca entreaberta no último hausto, todos detalhes físicos de que se veste o não existir. Viver, morrer, a verdade que sustenta o paradoxo é uma só, um ciclo perpétuo e inviolável de destinos trançados. A única diferença entre o internato e a estância é que, aqui, os ratos ainda vivem.”
Outro trecho:
Do Diário de Ismael Liedke Solenar, primeiro de dezembro de 1924:
“(...) Lá dentro, surpreendentemente, um calor úmido me envolveu, queria ficar ali, para sempre, e ela, acomodando-se em um canto, trouxe-me ao seu colo. O abraço quente me envolvia enquanto arrepios trêmulos percutiam-me os músculos; o coração que escutava bater junto ao meu ouvido parecia ser o mesmo que me dava vida. Então, banhados pela luz do estranho luar, revelou-me seus seios claros, ansiosos, num pulsante convite prontamente correspondido pela fome de minha boca. Pus-me a sugar com avidez, feito uma criança, como se assim pudesse não só matara a sede de tantos dias perdido no deserto mas também toda fome que viera ao mundo; e, num crescente desespero, prisioneiro do delírio, enterrei meus dentes na pele, rasguei-a,sentindo um líquido espesso inundar minha garganta. E quanto mais lhe devorava o peito, mais forte se fazia seu abraço; quanto mais o sabor confuso de sua carne me convulsionava a língua, mais o meu desejo se aguçava – até asfixiar-me, uma cascata de sangue a inundar os pulmões. Meu tórax se comprimia, as artérias do pescoço se dilatavam, grossas feito cordas, e ela suspirou: a carne que comes e o sangue que bebes são os mesmos teus.
Acordei sentindo a umidade abundante dos lençóis, atirei-os longe.”
O que já disseram:
Lea Masina:
“Todos os ingredientes que se esperam de um bom romance aí estão: amores conflituosos, relações incestuosas, perseguições e ódios implacáveis, medo, crueldade, ambição, preconceito, sofrimento e morte. Tudo isso gestado pelas personagens que, ao registrar seus sentimentos, constroem-se umas às outras, completando os fragmentos dos relatos como quem tece um bordado de fina trama.”
O Jacobsen é fera! Guardo num cofre secreto os
ResponderExcluirexemplares autografados de "Solenar" e "Uma leve simetria" devidamente autografados.
Dentro de alguns anos farão minha independêcia
financeira.
smmelo
Além de uma história boa, com todos os ingredientes para não abandonar o livro, o leitor vai encontrar uma linguagem primorosa. O jovem autor consegue abordar um tema àspero, de uma forma suave, doce e deslizante como um veludo.
ResponderExcluirGraça
Caridosa porque te chamou de jovem né...
ResponderExcluir