segunda-feira, 12 de outubro de 2009
Van Gogh
Blogue de Barbara Decouti, voltado para intervenções e/ou interpretações de obras do Van Gogh. São contribuições do mundo todo, e a maioria é bem tosca, mas tem alguns legais.
quinta-feira, 1 de outubro de 2009
Uma Leve Simetria
No terceiro livro de Rafael Bán Jacobsen, Uma Leve Simetria (Não Editora, 2009) vemos alguns elementos do seu romance anterior (Solenar), como a delicadeza com quem trata temas tabus, o cuidado com a palavra, a presença de um personagem jovem e bastante amadurecido, o questionamento existencial. Ainda assim, essas semelhanças, que poderiam parecer um esgotamento de recursos, somente evidenciam a consolidação de um estilo característico do escritor.
Uma Leve Simetria mostra, pelos olhos de um narrador em primeira pessoa, os conflitos de um amor proibido. E contar mais talvez seja contar demais.
Trecho do livro:
“A negativa veio com firmeza: não.
Quero te pedir uma coisa, Daniel: não comentes sobre isso com ninguém.
Permaneci calado. Nesse pedido, o golpe final: sim, o que eu sentia era proibido; sim, as palavras, os carinhos, a ânsia, tudo tinha de ser amortalhado no silêncio. Sem resposta, o rabino insistiu: prometes para mim?
No lugar da promessa, uma indagação: por que não posso gostar dele?
Não me perguntes isso, Daniel, por favor.
Tudo poderia ter acabado nesse instante: a conversa, com um assentimento; minha história com Pedro, com uma automutilação; meus devaneios e desespero, com o tempo – da eternidade. Mas o que o rabino Levi disse, a seguir, aniquilou o pouco de mim que ainda lutava: se olharmos friamente para a Lei, nada impede o gostar; contudo, a realização é vedada. Entendes, Daniel?
Sim, eu entendia. O mandamento era ainda mais cruel do que parecia a princípio, um cântico terrível que, em vez de trazer paz e alento, inflamava conflitos. Eu poderia viver para sempre querendo pedro, buscando, no ventre solitário das madrugadas, sua imagem para me acalentar; nunca, porém, a vontade divina se alegraria caso fosse concedida a mim a graça de traduzir o delírio em toques ou palavras sopradas ao ouvido dele, prenunciando o mais sublime enlevo. Nessa hora, então, o sangue derramado sobre nossas cabeças.”
O que já disseram:
Moacyr Scliar, imortal:
“Uma leve simetria revela-se uma grata surpresa. Com grande sensibilidade e não menor talento literário, Rafael Bán Jacobsen narra-nos uma história que, tendo como moldura a vida comunitária judaica com seus costumes e suas tradições, representa, contudo, um verdadeiro mergulho na condição humana – uma obra que, desde já, consagra o seu autor como um importante nome na nova geração de escritores brasileiros.”
Léa Masina:
“Não se trata de mais uma história judaica, do tipo que se enquadra num regionalismo étnico e urbano. Muito embora os usos e costumes formem o substrato concreto dessa narrativa – e são muitas as expressões que remetem a essas particularidades culturais e a contextualizam –, o que interessa ao leitor é o desenvolvimento dos conflitos e das relações humanas; em especial, o desenrolar da história de amor entre dois adolescentes, que alcança momentos sublimes, sem jamais resvalar nesse terreno perigoso, onde a caricatura e o maniqueísmo são ameaças constantes.”
Carlos André Moreira, jornalista:
“Uma Leve Simetria trata de um tema antigo como o mundo: o embate entre aspirações de uma fé religiosa pura e o desejo proibido da carne. O que Jacobsen faz em sua narrativa é inverter o foco, ao apresentar esse tema aplicado a uma atração proibida entre dois rapazes. Um tema que o livro também proclama antigo como o mundo.”
Uma Leve Simetria mostra, pelos olhos de um narrador em primeira pessoa, os conflitos de um amor proibido. E contar mais talvez seja contar demais.
Trecho do livro:
“A negativa veio com firmeza: não.
Quero te pedir uma coisa, Daniel: não comentes sobre isso com ninguém.
Permaneci calado. Nesse pedido, o golpe final: sim, o que eu sentia era proibido; sim, as palavras, os carinhos, a ânsia, tudo tinha de ser amortalhado no silêncio. Sem resposta, o rabino insistiu: prometes para mim?
No lugar da promessa, uma indagação: por que não posso gostar dele?
Não me perguntes isso, Daniel, por favor.
Tudo poderia ter acabado nesse instante: a conversa, com um assentimento; minha história com Pedro, com uma automutilação; meus devaneios e desespero, com o tempo – da eternidade. Mas o que o rabino Levi disse, a seguir, aniquilou o pouco de mim que ainda lutava: se olharmos friamente para a Lei, nada impede o gostar; contudo, a realização é vedada. Entendes, Daniel?
Sim, eu entendia. O mandamento era ainda mais cruel do que parecia a princípio, um cântico terrível que, em vez de trazer paz e alento, inflamava conflitos. Eu poderia viver para sempre querendo pedro, buscando, no ventre solitário das madrugadas, sua imagem para me acalentar; nunca, porém, a vontade divina se alegraria caso fosse concedida a mim a graça de traduzir o delírio em toques ou palavras sopradas ao ouvido dele, prenunciando o mais sublime enlevo. Nessa hora, então, o sangue derramado sobre nossas cabeças.”
O que já disseram:
Moacyr Scliar, imortal:
“Uma leve simetria revela-se uma grata surpresa. Com grande sensibilidade e não menor talento literário, Rafael Bán Jacobsen narra-nos uma história que, tendo como moldura a vida comunitária judaica com seus costumes e suas tradições, representa, contudo, um verdadeiro mergulho na condição humana – uma obra que, desde já, consagra o seu autor como um importante nome na nova geração de escritores brasileiros.”
Léa Masina:
“Não se trata de mais uma história judaica, do tipo que se enquadra num regionalismo étnico e urbano. Muito embora os usos e costumes formem o substrato concreto dessa narrativa – e são muitas as expressões que remetem a essas particularidades culturais e a contextualizam –, o que interessa ao leitor é o desenvolvimento dos conflitos e das relações humanas; em especial, o desenrolar da história de amor entre dois adolescentes, que alcança momentos sublimes, sem jamais resvalar nesse terreno perigoso, onde a caricatura e o maniqueísmo são ameaças constantes.”
Carlos André Moreira, jornalista:
“Uma Leve Simetria trata de um tema antigo como o mundo: o embate entre aspirações de uma fé religiosa pura e o desejo proibido da carne. O que Jacobsen faz em sua narrativa é inverter o foco, ao apresentar esse tema aplicado a uma atração proibida entre dois rapazes. Um tema que o livro também proclama antigo como o mundo.”
Solenar
Um livro fácil de ler, mas difícil de escrever. É a impressão que fica ao nos depararmos com a estrutura de Solenar (Movimento, 2005), segundo livro do jovem escritor Rafael Bán Jacobsen. A narrativa de 219 páginas começa em 1954, com o relato de Henrique Kolling, jornalista que viaja à cidade interiorana de Passo dos Tropeiros para investigar uma tragédia ocorrida trinta anos antes com a tradicional família Solenar. As páginas de sua investigação na cidade são intercaladas com cartas e trechos de diários dos personagens envolvidos na misteriosa tragédia familiar. E é nesse ponto que começa o jogo do escritor com o leitor.
Aquilo que em princípio parece apenas um quebra-cabeças que se monta com paciência, com cada peça contribuindo para a construção da imagem final, se mostra um engodo: as peças se encaixam perfeitamente, mas a paisagem que aparece está encoberta por uma fina névoa que aos poucos se dissipa, para mostrar uma outra imagem novamente. Isso porque percebemos que nem todos os relatos são confiáveis. Diante das informações desencontradas, ou mesmo inverossímeis, como saber o que é relato verídico e o que é delírio, como saber onde está a verdade, se é que ela existe? Byron teria escrito, em seu diário: “Só Deus sabe as contradições que este diário pode conter. Se sou sincero comigo mesmo (infelizmente mente-se mais para si do que para os outros), cada página deve invalidar, refutar e inteiramente repudiar a que a antecede”.
Diferente de outros da nova geração de autores gaúchos, Jacobsen prima pelo esmero da construção da frase, valorizando cada escolha lexical. Outra coisa que chama a atenção no livro é a caracterização que o autor faz de cada personagem, não apenas nos aspectos físico e psicológico, mas pelos diferentes escritos. Há um menino de 13 anos, seu irmão mais velho, uma velha senhora e outros, e cada um tem seu estilo próprio de escrever (com algum destaque para o diário de Ismael). O fato estranho é que todos escrevem bem.
Trechos de Solenar:
Do Diário de Ismael Liedke Solenar, dia 19 de novembro de 1924:
“(...) Despertei afogado na escuridão, com a garganta queimando; ela estava em meu quarto, eu podia sentir, ou talvez fosse apenas um rato, visitante sem convite nesta madrugada de ruídos rastejantes. Quieto, até as pontas geladas dos dedos, estava novamente confinado ao sepulcro de meus ossos, desejando que a angústia acabasse. Pensei no internato, na voz do professor longe dos meus ouvidos – a água oxigenado misturada ao sangue do rato... –, no animal morto sobre minha classe, em coisas tolas que agora tomavam novo significado. Os demais garotos pareciam atentos, perplexos ante a química da vida, enquanto eu me indagava sobre a morte, a inércia fatal induzida pelo clorofórmio, a boca entreaberta no último hausto, todos detalhes físicos de que se veste o não existir. Viver, morrer, a verdade que sustenta o paradoxo é uma só, um ciclo perpétuo e inviolável de destinos trançados. A única diferença entre o internato e a estância é que, aqui, os ratos ainda vivem.”
Outro trecho:
Do Diário de Ismael Liedke Solenar, primeiro de dezembro de 1924:
“(...) Lá dentro, surpreendentemente, um calor úmido me envolveu, queria ficar ali, para sempre, e ela, acomodando-se em um canto, trouxe-me ao seu colo. O abraço quente me envolvia enquanto arrepios trêmulos percutiam-me os músculos; o coração que escutava bater junto ao meu ouvido parecia ser o mesmo que me dava vida. Então, banhados pela luz do estranho luar, revelou-me seus seios claros, ansiosos, num pulsante convite prontamente correspondido pela fome de minha boca. Pus-me a sugar com avidez, feito uma criança, como se assim pudesse não só matara a sede de tantos dias perdido no deserto mas também toda fome que viera ao mundo; e, num crescente desespero, prisioneiro do delírio, enterrei meus dentes na pele, rasguei-a,sentindo um líquido espesso inundar minha garganta. E quanto mais lhe devorava o peito, mais forte se fazia seu abraço; quanto mais o sabor confuso de sua carne me convulsionava a língua, mais o meu desejo se aguçava – até asfixiar-me, uma cascata de sangue a inundar os pulmões. Meu tórax se comprimia, as artérias do pescoço se dilatavam, grossas feito cordas, e ela suspirou: a carne que comes e o sangue que bebes são os mesmos teus.
Acordei sentindo a umidade abundante dos lençóis, atirei-os longe.”
O que já disseram:
Lea Masina:
“Todos os ingredientes que se esperam de um bom romance aí estão: amores conflituosos, relações incestuosas, perseguições e ódios implacáveis, medo, crueldade, ambição, preconceito, sofrimento e morte. Tudo isso gestado pelas personagens que, ao registrar seus sentimentos, constroem-se umas às outras, completando os fragmentos dos relatos como quem tece um bordado de fina trama.”
Aquilo que em princípio parece apenas um quebra-cabeças que se monta com paciência, com cada peça contribuindo para a construção da imagem final, se mostra um engodo: as peças se encaixam perfeitamente, mas a paisagem que aparece está encoberta por uma fina névoa que aos poucos se dissipa, para mostrar uma outra imagem novamente. Isso porque percebemos que nem todos os relatos são confiáveis. Diante das informações desencontradas, ou mesmo inverossímeis, como saber o que é relato verídico e o que é delírio, como saber onde está a verdade, se é que ela existe? Byron teria escrito, em seu diário: “Só Deus sabe as contradições que este diário pode conter. Se sou sincero comigo mesmo (infelizmente mente-se mais para si do que para os outros), cada página deve invalidar, refutar e inteiramente repudiar a que a antecede”.
Diferente de outros da nova geração de autores gaúchos, Jacobsen prima pelo esmero da construção da frase, valorizando cada escolha lexical. Outra coisa que chama a atenção no livro é a caracterização que o autor faz de cada personagem, não apenas nos aspectos físico e psicológico, mas pelos diferentes escritos. Há um menino de 13 anos, seu irmão mais velho, uma velha senhora e outros, e cada um tem seu estilo próprio de escrever (com algum destaque para o diário de Ismael). O fato estranho é que todos escrevem bem.
Trechos de Solenar:
Do Diário de Ismael Liedke Solenar, dia 19 de novembro de 1924:
“(...) Despertei afogado na escuridão, com a garganta queimando; ela estava em meu quarto, eu podia sentir, ou talvez fosse apenas um rato, visitante sem convite nesta madrugada de ruídos rastejantes. Quieto, até as pontas geladas dos dedos, estava novamente confinado ao sepulcro de meus ossos, desejando que a angústia acabasse. Pensei no internato, na voz do professor longe dos meus ouvidos – a água oxigenado misturada ao sangue do rato... –, no animal morto sobre minha classe, em coisas tolas que agora tomavam novo significado. Os demais garotos pareciam atentos, perplexos ante a química da vida, enquanto eu me indagava sobre a morte, a inércia fatal induzida pelo clorofórmio, a boca entreaberta no último hausto, todos detalhes físicos de que se veste o não existir. Viver, morrer, a verdade que sustenta o paradoxo é uma só, um ciclo perpétuo e inviolável de destinos trançados. A única diferença entre o internato e a estância é que, aqui, os ratos ainda vivem.”
Outro trecho:
Do Diário de Ismael Liedke Solenar, primeiro de dezembro de 1924:
“(...) Lá dentro, surpreendentemente, um calor úmido me envolveu, queria ficar ali, para sempre, e ela, acomodando-se em um canto, trouxe-me ao seu colo. O abraço quente me envolvia enquanto arrepios trêmulos percutiam-me os músculos; o coração que escutava bater junto ao meu ouvido parecia ser o mesmo que me dava vida. Então, banhados pela luz do estranho luar, revelou-me seus seios claros, ansiosos, num pulsante convite prontamente correspondido pela fome de minha boca. Pus-me a sugar com avidez, feito uma criança, como se assim pudesse não só matara a sede de tantos dias perdido no deserto mas também toda fome que viera ao mundo; e, num crescente desespero, prisioneiro do delírio, enterrei meus dentes na pele, rasguei-a,sentindo um líquido espesso inundar minha garganta. E quanto mais lhe devorava o peito, mais forte se fazia seu abraço; quanto mais o sabor confuso de sua carne me convulsionava a língua, mais o meu desejo se aguçava – até asfixiar-me, uma cascata de sangue a inundar os pulmões. Meu tórax se comprimia, as artérias do pescoço se dilatavam, grossas feito cordas, e ela suspirou: a carne que comes e o sangue que bebes são os mesmos teus.
Acordei sentindo a umidade abundante dos lençóis, atirei-os longe.”
O que já disseram:
Lea Masina:
“Todos os ingredientes que se esperam de um bom romance aí estão: amores conflituosos, relações incestuosas, perseguições e ódios implacáveis, medo, crueldade, ambição, preconceito, sofrimento e morte. Tudo isso gestado pelas personagens que, ao registrar seus sentimentos, constroem-se umas às outras, completando os fragmentos dos relatos como quem tece um bordado de fina trama.”
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