terça-feira, 10 de maio de 2011

O filho eterno

Trechos do livro O filho eterno (Record, 2007), de Cristóvão Tezza.



Ele dormiu, ou quase dormiu, num sofá vermelho ao lado da cama alta de hospital, para onde trouxeram a mulher em algum momento da madrugada. A criança estaria no berçário, uma espécie de gaiola asséptica, que o fez lembrar do Admirável mundo novo: todos aqueles bebês um ao lado do outro, atrás de uma proteção de vidro, etiquetados e cadastrados para a entrada no mundo, todos idênticos, enfaixados na mesma roupa verde, todos mais ou menos feios, todos amassados, sustos respirantes, todos imóveis, de uma fragilidade absurda, todos tabula rasa, cada um deles apenas um breve potencial, agora para sempre condenados ao Brasil, e à língua portuguesa, que lhes emprestaria as palavras com as quais, algum dia, eles tentariam dizer quem eram, afinal, e para que estavam aqui, se é que uma pergunta pode fazer sentido.


Era como se já tivesse acontecido – largou as mãos da mulher e saiu abrupto do quarto, numa euforia estúpida e intensa, que lhe varreu a alma. Era preciso sorver essa verdade, esse fato científico, profundamente: sim, as crianças com síndrome de Down morrem cedo. (...) E há mais, entusiasmou-se: quase todas têm problemas graves de coração, malformações de origem que lhes dão uma expectativa de vida muito curta. Extremamente curta, ele reforçou, como quem dá uma aula, o balançar compreensivo de cabeça – é triste, mas é real.E há milhares de outros pequenos defeitos de fabricação. Ele acendeu um cigarro, e parecia que a vida inteira voltava ao normal ao sentir aquela tragada maravilhosa, intensa, perfumada: veja, ele se dizia, não há velhos mongoloides. Você tem certeza disso?, alguém perguntaria, erguendo o braço; sim, nenhuma dúvida; eles morrem logo, e ele desejou passear por uma rua movimentada às seis da tarde só para conferir in loco, cabeça a cabeça, essa verdade indiscutível: eles não existem. Veja você mesmo, procure na multidão: não existem. Uma enfermeira lhe perguntou alguma coisa, ele diz que não, que vai sair, não querendo pensar muito na sua descoberta para não estragá-la, para melhor usufruir a liberdade que, súbita, estava diante dele, talvez – ele calculou – seja só uma questão de dias, dependendo da gravidade da síndrome.


A primeira criança de um casamento é uma aporrinhação monumental – o intruso exige espaço e atenção, chora demais, não tem horário nem limites, praticamente nenhuma linguagem comum, não controla nada em seu corpo, que vive a borbulhar por conta própria, depende de uma quantidade enorme de objetos (do berço à mamadeira, do funil de plástico às fraldas, milhares delas) até então desconhecidos pelos pais, drena as economias, o tempo,a paciência, a tolerância, sofre males inexplicáveis e intraduzíveis, instaura em torno de si o terror da fragilidade e da ignorância, e afasta, quase que aos pontapés, o pai da mãe. E é uma criança – como todo recém-nascido – feia. É difícil imaginar que daquela coisa mal-amassada surja como que por enquanto algum ser humano, só pela força do tempo. E no caso dele, ele pensa – e quando pensa acende outro cigarro -, a troco de nada. Para dizer as coisas claramente, ele conclui todos os dias: essa criança não lhe dará nada em troca. Sequer aquele prazer mesquinho, mas razoável, de mostrá-lo aos outros como um troféu, já antevendo secretas e inauditas qualidades no futuro daquele (que seria um) belo ser. Se eu escrever um livro sobre ele, ou para ele, o pai pensa, ele jamais conseguirá lê-lo.

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